domingo, 23 de maio de 2010

à dois.

- Não sei explicar o que sinto, não encontro palavras.
- Claro está - comentou ele, continuando muito interessado no que fazia. Falava num tom de voz verdadeiramente clínico e indiferente - Terei então de lhe pedir que não volte a visitar-me para eu encontrar de novo a minha paz de espírito.
Olhei para as mãos dele. Sentia-me algo chocada.
- Em alguns aspectos - prosseguiu ele - você é mais velha do que eu. Nunca esteve apaixonada. Talvez nunca o venha a estar. O amor é uma coisa que nos acontece periodicamente. Pelo menos, aos homens! Voltamos aos vinte anos, sofremos como rapazes de vinte anos. Readquirimos todos os estúpidos conceitos da juventude. Eu estou sendo razoável, de momento, mas asseguro-lhe que não me sinto assim, por dentro. Quando você telefonou, quase tive um ataque com o nervosismo. Sou um velho, apaixonado... Um personagem de comédia! Já muito visto, nem sequer engraçado...
- Por que razão julga que nunca me apaixonarei?
- Eu disse, talvez.
- Só tenho dezoito anos.
- Uma árvore de um metro de altura é tão árvore como uma de quatro metros. Mas lembre-se de que eu disse, talvez.
- As minhas dúvidas nada têm a ver com a diferença de idade.
Olhou-me um pouco magoado, sorriu e disse:
- Tem de me deixar um pretexto...
Fomos fazer café naquela detestável e minúscula cozinha, pensando que, de todas as maneiras, eu nunca poderia viver ali - só pensar no esforço doméstico! Uma vil onda irrelevante de covardia burguesa.
Ele voltou a falar, de costas para mim:
- Não deixei de pensar em você durante todas as férias. Costumava sair para o jardim no meio da noite e olhar para o sul. Entende?
- Sim - respondi.
- Era em você que eu pensava, só em você. Não sei bem o que é, mas há qualquer coisa na sua expressão, no seu aspecto...
- O quê?
- A mulher que você virá a ser - disse ele.
- Uma mulher agradável?
- Muito mais que agradável.
Não sei descrever a maneira como ele disse essas palavras. Tristemente, quase desejando evitá-las. Doces, mas algo amargas. E, sobretudo, palavras honestas. Não me estava provocando, nem sendo formal. Essas palavras vieram-lhe bem do fundo da alma. Eu olhara para o chão durante toda aquela troca de palavras, porém ele fez-me olhar para ele, e sei que algo passou por entre nós. Algo que senti perfeitamente. Quase um contato físico. Algo que nos queria mudar. Ele haver dito uma coisa que tinha no coração, e eu senti-lo tão completamente...
Ficou olhando para mim, e eu fiquei embaraçada. Continuou observando-me fixamente. Tive de lhe pedir para desviar o olhar.
Aproximou-se de mim e deu-me a mão, levando-me gentilmente para a sala. Disse-me então que eu era realmente bela. "Bela, sensitiva, entusiasta, tenta ser honesta, consegue ser da sua idade, natural sem quaisquer pretensões e, ao mesmo tempo, um pouco antiquada, o que lhe dá um encanto muito especial. Até que sabe jogar xadrez bastante bem..."
- Não lhe posso falar assim sem você voltar a cabeça. E peço-lhe, pois, que não a volte; vá-se embora, agora...deixe-me só.
Beijou-me a cabeça. Empurrou-me. Comecei a descer as escadas. Parei e voltei-me para trás. Ele sorriu, mas era um sorriso triste.
- Queira eu que isso lhe passe depressa.
Sacudiu a cabeça. Não sei se ele queria dizer não, ou se pelo contrário, me queria indicar que aquilo nunca lhe passaria. Talvez ele próprio não o soubesse. Mas estava triste. Estava totalmente triste...

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Nova Gente e Os poucos

Odeio-os.
Odeio as pessoas sem educação e os ignorantes. Odeio as pessoas pomposas e falsas. Odeio os invejosos e os ressentidos. Odeio os mesquinhos, os avaros e os insignificantes. Odeio todas as criaturas pequenas que não têm vergonha de ser tão pequenas e inúteis. Odeio aquilo que pode-se classificar de Nova Gente, a nova classe média com os seus automóveis, o seu dinheiro, as suas televisões, as suas estúpidas vulgaridades e a sua ridícula imitação da burguesia.
Amo a honestidade, a liberdade e a generosidade. Amo criar, amo fazer, amo viver uma vida cheia, amo tudo o que não está imóvel, que não está morto, que não copia.
Sinto mais e mais este terrível peso morto da insignificante Nova Gente sobre tudo e todos. Estão corrompendo tudo, não há dúvida. Vulgarizam tudo. Chegam a matar as paisagens, como meu pai costumava dizer, a produção em massa, tudo em massa.
Eu sei perfeitamente que devíamos fazer face ao rebanho, tentar controlar a correria. Deveríamos trabalhar para eles e tolerá-los. Nunca me suicidarei, porque isso é a coisa mais desprezível que existe, só para fugir a uma vida que não me agrada. Mas, por vezes, confesso, a coisa é assustadora: pensar na luta pela vida é verdadeiramente odioso, se pensarmos a sério no assunto.
Tudo isso é conversa. É muito provável que eu me case com o homem que me apaixonei, que tenha filhos e que tudo mude tanto que nunca mais me preocuparei com estas coisas. Passarei a ser uma Mulher Pequena. Irei para o campo inimigo. Sempre tenho isso em mente. E temo.
No entanto, isto é o que penso atualmente. Pertenço a um grupo de pessoas que tem de lutar contra todo o resto. Não sei ao certo quem compõe o grupo - homens famosos, vivos ou mortos, que lutaram pelas causas justas, que criaram e pintaram com arte e carinho, e as pessoas não famosas que não mentem, que tentam não ser preguiçosas, que procuram ser humanas e inteligentes.
Não precisam de ser boas pessoas. Todas elas têm momentos de fraqueza. Momentos de sexo e de álcool. Momentos covardes e momentos de ambição financeira. Alguns pensam mesmo em matar-se. Mas uma parte, uma boa parte, está de corpo e alma com o movimento.
Os poucos.